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Convite para ministro

Por: Ribeiro Aires

Era sábado, dia de um outono estival. Depois de uma malgada de tripas, Leandro sentara-se  à sombra,  esperando não ser acordado da sua sesta por uma laranja atrevida caída da velha laranjeira, plantada pelo seu avô, há uns anos valentes. Não  foram precisos muitos minutos para que ronronasse e entrasse em delírios.  

– Fui convidado para ministro.

– Quê? – questionou-o o primo.

– Queres que te repita?  Fui convidado para ministro. – asseverou.

-Quê? Será que tenho cerume nos ouvidos? Ainda há pouco fui ao otorrino, não pode ser.

– Se calhar ainda lá tens uns restos  empedrados. Uma bola. Mesmo com esse ouvido duro  eu repito: fui convidado para ministro.

-Ministro da comunhão, só pode ser, ou ministro do culto, tão próximo és do pároco, tão amigo, e só por isso podes ter esse cargo que, quanto a qualidade e profundidade religiosa, tu és como os evangelhos apócrifos.

– Mas que sabes tu de evangelhos? Nada. Deitas  rolos de  palavras que o vento leva para tentares mostrar conhecimento. Só isso. Tu nunca leste a bíblia inteira. Sei-o. Disseste-mo.

– Isso, insulta. Tal comportamento nada abona se fores ministro da igreja.

– Qual ministro da igreja. Eu fui convidado para ministro a sério.

Leonardo riu-se desbragadamente.

– Tu perdeste o juízo, foi? Estás a variar. E a continuares com essa atitude o teu lugar é no Magalhães de Lemos.  Sabes, uma coisa? Não tenho paciência para tanto disparate. Ministro!  Isto é como dizeres-me que as galinhas têm dentes… Mas que história da carochinha! Ministro? E que ministro serias tu?

– Ministro sem pasta, claro – sorriu levemente Leandro.

Leonardo  voltou a encantar-se.

– Sem pasta? Eu logo vi. E sem pasta o que farias tu? Ninguém faz nada sem pasta.

– Sem pasta quer dizer que eu tinha todas as pastas. Podia intervir em todas.

– Sem pasta? – riu-se –  Louco! Sem pasta ninguém faz nada. É ouvir os ministros da Saúde, da Educação, etc., sempre a dizerem que não têm pasta, nem para lavarem os dentes.

Percebia-se que agora divergiam no significado de «pasta». Havia entre eles um equívoco, propositado ou não. Parecia um a provocar o outro.

–  Leva-me a sério, sim. Mas para  teu sossego  quando me telefonaram eu disse logo que não. É verdade que eles insistiram, mas eu continuei a dizer que não.

– Eles quem?

– Do Partido Socialista, claro. Não são eles que estão no governo?

– Olha, eu vou-te deixar falar, que é para ver até onde isto vai.

– Eu sou uma pessoa séria.

– Estou a ver.

– Pois. Conheces-me, há muito.

– Claro. Teu primo há tanto tempo. Sou todo ouvidos.

–  A minha mulher anda aí com umas ideias.  Quer candidatar-se a uns subsídios. Lembrou-se de ser empresária.

–  Quê? Estás a querer contar-me outra  historieta?

– Quer valorizar o bairro.

– E o que quer fazer?

– Anda aí com umas ideias fantásticas.

– Que ideias?

– Desconfio que quer criar uma fundação.

– Fundar o quê? Uma cooperativa?

 – Uma fundação social.

– Um lar?

– Só me diz quando tiver o projeto desenhado e iniciado os apoios necessários que terão de ser muitos. Há o PPR… e disse-me logo: “homem, não te metas em políticas”. Estás a ver. Tive de dizer não ao convite. Doeu-me. Esta coisa das incompatibidades… eh, pá! Não sei que diga.

– É pá. Se queres ser ministro vai tomando medidas. Quando alguém se demitir pode ser que te voltem a convidar.

– Que medidas?

– Divorcias-te.

– Tu estás louco. Eu amo muito a minha mulher. Ela é a minha vida.  E com que justificação?

– Isto é fácil. Na vida há jogos que se têm de jogar.  Fazes um divórcio que não é divórcio. Nem sais de casa. É só de papel e de comum acordo. Continuais a viver como dantes. O que fica escrito no papel é a incompatibilidade com ela, mas ficas compatível para a política.  Segues o teu  sonho e ela o dela. Quando acabar o teu tempo de ministro, voltais ao tribunal e dais por fim a incompatibilidade, voltais a ser compatível.

Estava o Leandro neste ponto quando uma laranja lhe assapa num olho. Estrebuchou assarapantado. À sua frente estava Leonardo a rir-se, com satisfação. Havia sido ele a dar um toque no ramo de onde se despegou o inocente fruto.   

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