Os nossos autarcas, os mais afoitos e bem sucedidos, possuem uma visão serena do mundo e, muitos deles, até gostam de usar roupa um pouco informal. Estou em crer que dariam mesmo bons mediadores imobiliários. Mas nós, os seus irredutíveis votantes, andamos todos seriamente empenhados na situação atual, sem sabermos lá muito bem em que ela consiste e para onde nos leva. Temos é de parar com as habituais críticas irritantes, pois não podemos comparar feridas com arranhões e, de seguida, esboçar um sorriso triste, à Stan Laurel. Cada um tem as suas próprias cicatrizes. O truque que ainda hoje resulta é transformar a água em vinho. As pessoas acham que as coisas só podem correr de duas maneiras, uma planeada e a outra não planeada, a ver o que dá. Mas as coisas começam de uma determinada maneira e nós, depois, damos-lhes o rumo que queremos. Por vezes passamo-nos dos carretos porque vemos flâmulas a adejar ao vento. Dizem que a mão de Deus se manifesta nos detalhes. Ou será a do Diabo? Mas, mesmo sem intervenção divina ou demoníaca, acabam por aparecer as zonas de afrouxamento. E nem é preciso, sequer, procurá-las. Nós, os do povo, costumamos ser bipolares. Umas vezes dizemos sim e outras, provavelmente, não. Mas nunca deixamos de tentar ter uma visão clara das coisas através da névoa que nos tolda a mente. Hoje em dia não há muita coisa que nos anime. O povo vai ter que mudar de profissão, de vida, de sexo ou de país. Ou entrar na tal canoa da canção e rumar caras ao mar alto para que nenhum barco nos abalroe nas imediações do cais. Provavelmente o mundo é mais bonito do que aquilo que pensamos. Nós já estamos habituados, a seguir às grandes crises têm logo início as indefinições. E não saímos disto. Entretanto falamos das virtudes antigas e congratulamo-nos com os retornos frívolos e nostálgicos dos triunfos passados. Mas isso é como ter um acidente depois de roubar um carro. A nossa euforia é quase sempre venenosa. E a nossa terra monocórdica. Nós por cá costumamos votar, pelo menos, três vezes seguidas no mesmo candidato autárquico. Gostamos dos que vencem. Somos tão irrelevantes como troncos de árvores ou bancos de jardim. Parece que o nosso adversário é o futuro. Parece que nunca o queremos enfrentar, mas evitá-lo. Ainda há por aí muito boa gente que justifica a ideia de uma ditadura leve, que não revele desprezo pela democracia, como o desígnio romântico de um país pobre. Somos boa gente que gosta de se organizar e depois adormecer. Adoramos a nostalgia e as viagens saudosas e os jantares melancólicos de ex-alunos e ex-combatentes e, agora, de caminhantes. Mas, por cá, os ricaços, continuam a parecer-se com dicionários que se estendem nos solários à espera que a sua pele fique de um moreno caucasiano, só ao alcance de poucos. Claro que não é agradável dar a volta ao zoo e depois regressar ao estábulo. Os animais podem ter as feridas cicatrizadas, mas não têm pecados. Eu pecador me confesso. Por vezes penso ir e não voltar. Mas é sol de pouca dura. Gosto de pensar que o improvável pode durar o tempo suficiente para se tornar real. Mas também é sol de pouca dura. Os portugueses são como faroleiros em plena luz do dia. É preciso que se diga que as coisas más não passam a ser boas porque são praticadas pelos progressistas e as boas se transformam em más porque são incorporadas na praxis dos conservadores. A ditadura partidária é que pode transformar a democracia participativa numa choldra. A história diz-nos que nem as ditaduras são inevitáveis, nem as democracias são uma inevitabilidade. A realidade, para mal dos nossos pecados, é bem mais complexa do que isso. E a dita superioridade moral da esquerda vai-se derretendo como as velas que ardem no tocheiro do S. Caetano. A verdade é que somos muito bons em abaixo-assinados e petições, mas fracos em ações. Por muito que nos custe, nós ainda vivemos num tempo diferente da maioria dos europeus. De repente acordo e as sombras começam a estender-se para além dos beirais e dos sicómoros. Os alpendres estão cheios de gente que ri e faz saudações primaveris. Alguém parece sorrir para mim. Faço então um pequeno aceno amigável e sorrio. Levanto-me e vou-me embora. Tó, Diabo, tó.